Homens trans engravidam, dão à luz e inauguram novo arranjo familiar 6m6xq
Em um mundo mais aberto à diversidade, pesquisas mostram que, em pouco tempo, a estranheza dará lugar ao fato consumado 5g3t1f

Fruto de uma gestação muito desejada, Alex veio ao mundo com 3,5 quilos e 49 centímetros em uma maternidade carioca. O parto foi acompanhado por uma doula e a cesariana ocorreu sem intercorrências, ao som da música Anunciação, de Alceu Valença. A chegada da bebê Alex, hoje com 6 meses, não chamaria atenção entre os 2,6 milhões de nascimentos que ocorrem por ano no país, não fosse por um detalhe: o pai, Cleyton Cruz Bitencourt, 26 anos, foi quem a gestou e deu à luz. Não se trata de algum avanço extraordinário da ciência ou milagre da natureza, mas de uma reviravolta nos costumes e na composição da sociedade: com barba, voz grave e feições masculinas, Bitencourt é um homem trans que nasceu biologicamente mulher e optou por fazer a transição sem retirar os órgãos sexuais femininos — capaz, portanto, de ter filhos. “Mesmo me reconhecendo como homem, sempre sonhei gerar uma vida”, diz o auxiliar inistrativo, casado com Fabiana Santos, 28 anos — ela, uma mulher trans com órgãos masculinos. “Vivemos a era do ‘eu posso ser o que quiser’, e a discussão já atingiu outro estágio no universo trans. A tendência é que essas gravidezes sejam cada vez mais comuns”, afirma o antropólogo Bernardo Conde, da PUC-RJ.

Embora um barbudo com bebê no ventre ainda seja raridade nas ruas, a internet está apinhada de fotos e vídeos de papais exibindo suas barrigonas. O Unicode Consortium, ONG do Vale do Silício encarregada de aprovar novos emojis — figurinha que traduz hábitos e mudanças da sociedade —, anunciou o lançamento, no início de 2022, de um ícone com um homem grávido. Ainda não há registro do número de crianças nascidas nessa nova configuração, que vem chacoalhando tabus ao ampliar limites antes s à ala feminina da humanidade, mas alguns indicadores confirmam que se trata de um universo em expansão. O Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), presente em vários estados, teve contato com cerca de trinta casos nos últimos dois anos. No mesmo período, a Santa Casa de São Paulo realizou três partos de pessoas transgênero — aquelas que não se identificam com o gênero atribuído ao nascer. “A possibilidade de uma gravidez assim não é nenhuma novidade, mas ela vem ganhando visibilidade à medida que a transexualidade é mais discutida e aceita”, avalia o psicólogo Ricardo Martins, do ambulatório para saúde integral de travestis e transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids de São Paulo.
Por mais que traga à lembrança o filme Júnior, de 1994, no qual Arnold Schwarzenegger engravida ao servir de cobaia para uma nova droga, na vida real a gestação de um transexual masculino é igual à tradicional. Desde que, claro, no processo de masculinização ele não opte pela cirurgia de redesignação de sexo, que envolve a retirada de ovários e útero, e se disponha a interromper a terapia com testosterona para reativar a ovulação. “Se antes, para muitos trans, a reprodução era assunto encerrado, agora há o entendimento de que a gravidez não os faz menos homens”, ressalta Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Identidade de Gênero do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Bitencourt, o pai de Alex, sem alterar em nada seu jeito de ser, fez questão de amamentar a filha. Não esconde, porém, o desconforto em público na gestação. “Desisti de ir à praia com medo de retaliação, após olhares e comentários maldosos”, lembra.

Como ele, o pizzaiolo e influenciador Rodrigo Bryan da Silva, 34 anos, batizado Bárbara ao nascer e que aos 27 iniciou a transição e removeu os seios, decidiu tornar pública sua história nas redes sociais como forma de combater a transfobia. Morador de Montes Claros, em Minas Gerais, e casado com Ellen Carine, mulher trans de 26 anos, Silva deu à luz Isabella há seis meses. “O mundo seria melhor se as pessoas, em vez de julgar, nos respeitassem. Temos o direito de ter filhos como qualquer um”, defende. No fim de julho, desta vez sem planejar, descobriu que estava grávido outra vez. “Viramos sensação na cidade”, conta, bem-humorado.
O americano trans Thomas Beatie foi o desbravador desse caminho em 2008, quando soube que a mulher (não trans) era estéril, resolveu engravidar recorrendo a um banco de sêmem e, revoltado com a demora e a dificuldade para ser atendido dignamente, tornou pública a sua saga. “Nove médicos se recusaram a nos ajudar. A sociedade da época foi cruel. Os comentários on-line me tratavam como se não fosse humano e alguns até desejaram a morte do bebê”, contou a VEJA. Ele teve três filhos com a primeira mulher e mais um com a atual, este gestado por ela. ada mais de uma década, o tema segue causando polêmica. Em julho, a professora de biologia Carole Hooven, da Universidade Harvard, manifestou em um programa de TV sua indignação com a orientação para usar o termo “pessoa grávida” no lugar de “mulher grávida” e recebeu uma enxurrada de críticas. “É vital ensinar uma linguagem inclusiva de gênero, demonstrando respeito por todos que podem engravidar”, contra-atacou Laura Lewis, diretora da força-tarefa de diversidade e inclusão do departamento de biologia.

Goste-se ou não de juntar homem e gravidez na mesma expressão, as pesquisas mostram que, em pouco tempo, a estranheza dará lugar ao fato consumado. Estudo realizado em 2019 pela ONG Family Equality mostrou que 63% das pessoas queer — que não se enquadram no padrão de binarismo homem e mulher — e trans entre 18 e 35 anos nos Estados Unidos pensam em ter uma prole. O sistema de saúde segue sendo problema em toda parte. “Fui a um posto fazer o pré-natal e ninguém entendia como um homem podia estar grávido”, lembra o músico trans Lourenzo Duvale Lima, 23 anos, conhecido como Aqualien, que está no sétimo mês e é casado com a cantora Isis Broken, travesti de 27. Visando a combater estigmas e a reduzir a burocracia, em junho o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, determinou que o cadastro do Sistema Único de Saúde (SUS) permita que cada paciente declare o gênero que quiser na marcação de consultas e exames. Além disso, na declaração de nascido vivo, o primeiro documento do bebê, em lugar de “mãe” se escreva “parturiente”. Tanto Bitencourt quanto Rodrigo Bryan constam na certidão de nascimento das filhas como “pai” e, como é de praxe nas famílias trans, não ligam a mínima para o gênero lá anotado para seu rebento. “Escolhi o nome Apolo para o meu bebê, que tem pênis, mas só vamos saber sua identidade de gênero quando ele escolher”, afirma o músico Aqualien. Opções não faltarão.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759