Com a polícia alheia 603y3a
Entre as proezas do governo de Putin está usar a Interpol para perseguir desafetos — e, quando lhe convém, desrespeitar tratados de extradição 554f4g

Nos muitos momentos bizarros da entrevista coletiva de Donald Trump e Vladimir Putin em Helsinque, apareceu a oferta do presidente russo de permitir que autoridades americanas interroguem seus doze conterrâneos indiciados por hackear computadores do comitê do Partido Democrata em 2016. Em troca, Putin quer ter o ao inglês William Browder, que mora nos Estados Unidos e foi o maior investidor estrangeiro na Rússia até 2005, quando acabou banido do país. Trump ouviu a proposta, mas não disse nem sim nem não.
Em 2017, Browder foi condenado à revelia na Rússia por evasão de divisas. Mas seu verdadeiro crime foi ter denunciado casos de corrupção que implicavam o governo, motivo pelo qual, oito anos antes, seu advogado russo, Sergei Magnitsky, fora morto na cadeia. O assassinato levou o ex-presidente Barack Obama a fazer retaliação assinando uma lei que permite o congelamento de bens e o cancelamento de visto americano para envolvidos em violações de direitos humanos na Rússia.
Browder também está no centro de uma disputa que vem abalando a credibilidade da própria Interpol, uma organização multilateral idealizada para impedir que criminosos cruzem as fronteiras nacionais para ficar impunes. Prestes a completar 95 anos em setembro, a Interpol é formada por policiais de 192 países-membros. O problema é que alguns desses países estão usando a organização para perseguir adversários políticos e religiosos. Em maio deste ano, durante uma viagem de Browder à Espanha, por exemplo, Moscou recorreu à provocação e emitiu um alerta de “difusão vermelha” da Interpol, o que significa que ele deveria ser preso. A polícia espanhola chegou a deter Browder em Madri. No mesmo dia, a Interpol revisou a ordem de prisão, constatou que era perseguição e soltou Browder.
O imbróglio levou um grupo de parlamentares ingleses a pedir a suspensão da Rússia da Interpol. No ano ado, uma comissão do Parlamento Europeu concluiu que Rússia, Turquia, China e Irã violam regularmente as regras da Interpol. O documento da comissão diz que metade dos 28 países que formam a União Europeia já identificou “difusões vermelhas” ilegais da Interpol a pedido dessas nações. “O impacto para as pessoas afetadas não se resume à prisão. Elas têm ativos congelados, a circulação impedida e a reputação devastada”, diz Jago Russell, diretor da Fair Trials, ONG com sede em Londres que defende sistemas judiciários mais justos.
Em outras frentes, a Interpol peca pela omissão. Na sexta-feira 13, as autoridades em Moscou ignoraram um pedido — esse consubstanciado — de prisão e extradição do conselheiro de relações internacionais do Irã, Ali Akbar Velayati, que visitava o país. Velayati é um dos acusados de planejar e executar um atentado terrorista em Buenos Aires, em 1994, que matou 84 pessoas. Está com ordem de prisão internacional desde 2006. Mas a Interpol manteve Velayati fora da lista, alegando que ele tem imunidade diplomática. A Argentina apelou, então, para um acordo de extradição mantido com a Rússia. O Kremlin nem respondeu à solicitação. Como se vê, Putin viola acordos internacionais para perseguir inimigos e proteger amigos.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592