Recorde de endividados expõe fraturas no crescimento econômico do Brasil
Mais de 70 milhões de brasileiros estão inadimplentes, número que mostra a demanda incessante por dinheiro em meio às fragilidades da economia

Se o contingente de brasileiros com “nome sujo” fosse uma nação, estaria entre as vinte mais populosas do mundo, superando países como França e Reino Unido. Pela primeira vez, o número de inadimplentes no Brasil ultraou a impressionante marca de 70 milhões de pessoas, equivalente a 42% dos adultos do país. O dado estarrecedor foi divulgado pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) na quarta-feira 14. Em paralelo, um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) revelou que, desde 2022, praticamente oito em cada dez famílias brasileiras possuem alguma dívida. O problema do endividamento persiste a despeito do mercado de trabalho aquecido e do recorde na renda dos trabalhadores, que atingiu uma média mensal de 3 410 reais no primeiro trimestre, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O contraste entre os bons números do mercado de trabalho e a massa de inadimplentes parece um paradoxo, mas a combinação dessas duas realidades revela, na verdade, a disfuncionalidade do crescimento econômico registrado nos últimos anos — impulsionado por estímulos governamentais que geram efeitos colaterais indesejados.
A premissa básica para o endividamento é a demanda por dinheiro. Parte das dívidas contraídas pelas pessoas físicas tem a finalidade de quitar débitos anteriores, em um efeito de “bola de neve”. Há também aqueles que se endividam com outro propósito: consumir o básico. É a situação de quem, por exemplo, utiliza o cartão de crédito para fazer compras no supermercado sem saber se vai conseguir pagar a fatura depois. Esse segundo caso é fruto do aumento da inflação, que pressiona o orçamento já apertado das famílias. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo acumulou alta de 5,53% nos doze meses encerrados em abril —puxada principalmente pelos custos dos alimentos. “A origem desse processo de endividamento está na inflação, que decorre de uma economia que cresce mais do que deveria por causa de estímulos fiscais”, afirma Nicola Tingas, economista-chefe da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi).
O volume de crédito contraído pelas pessoas físicas, que totaliza 4 trilhões de reais, estaria dentro de uma margem aceitável, mas há um grande ponto de alerta quanto ao crescimento do grupo classificado pelo Banco Central como “endividados de risco”. Segundo a instituição, cerca de 14 milhões de pessoas já estariam nessa situação, com sérios problemas para quitar suas dívidas. No primeiro trimestre deste ano, mais de 133 bilhões de reais foram concedidos a pessoas físicas via cheque especial, volume 13% maior do que o registrado nos primeiros três meses do ano ado. Atualmente, a modalidade cobra juros de, em média, 134% ao ano. Os empréstimos via cartão de crédito, em paralelo, cresceram 10% no mesmo período, com taxas de juros ainda maiores. O acúmulo de dívidas é uma bomba-relógio que pode explodir em um cenário de desaceleração da economia, como o que vem sendo projetado por especialistas. “Estamos no início de uma travessia que exige cautela”, alerta Tingas, da Acrefi.

Como se fosse um médico que receita mais algumas doses para um paciente que já vem perdendo o controle do consumo de álcool, o governo acelera fundo nos estímulos ao consumo. Desde janeiro de 2023, a gestão Lula adotou uma série de políticas para turbinar o crescimento da economia. Entre as iniciativas estão o novo Programa de Aceleração do Crescimento, a ampliação do Minha Casa, Minha Vida e liberações de saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Ao mesmo tempo, a Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, comandada por Marcos Pinto, colocou na praça algumas medidas para reduzir o endividamento das famílias, como o programa de renegociação Desenrola Brasil, e para melhorar o o ao crédito, a exemplo do Marco Legal das Garantias. Essas iniciativas, no entanto, se mostraram insuficientes e foram ofuscadas pela injeção de crescimento — e pela consequente inflação — promovida por outras áreas do governo. Se não bastasse, o Palácio do Planalto segue oferecendo empréstimos a uma população altamente endividada. Em março, lançou uma nova linha de crédito consignado para trabalhadores com carteira assinada e microempreendedores individuais (MEIs). Ela pode gerar uma carteira de 120 bilhões de reais em volume de dívidas.


Diante desse quadro, as instituições financeiras demonstram preocupação e projetam aumento da inadimplência para este ano. Apesar disso, segundo Rubens Sardenberg, economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), o fenômeno ainda não apresenta risco para o sistema bancário: “Os bancos colocariam o pé no freio de verdade se a inflação subisse muito, o que é improvável”. Ele atribui a quantidade de pessoas endividadas à facilidade de o ao crédito, que cresceu nos últimos anos impulsionada principalmente pelas fintechs. Flávio Ataliba, pesquisador do FGV Ibre, inclui essa ampla disponibilidade de crédito, somada ao despreparo financeiro da população, entre os elementos de uma “tempestade perfeita”. “O cartão de crédito, por exemplo, desassocia a dor do pagamento do prazer da compra”, diz Ataliba.
O endividamento tem consequências não só para as famílias, mas também para a economia como um todo. “Não tenho dúvida de que essas dívidas são parte da razão para o mês de abril ter sido ruim para o varejo”, afirma Ana Paula Tozzi, diretora-executiva da AGR Consultores. Ela lembra que muitos deixam de consumir para arcar com suas pendências financeiras, o que vai gerando efeitos econômicos perversos. Sem ajustes estruturais na economia e sem uma real mudança na educação financeira da população, o país continuará preso ao endividamento crônico e a um ciclo de crescimento frágil.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944