Ziraldo: o Brasil traçado de A a Z 5ac62
Cartunista e escritor deixa um trabalho inigualável 233x2g

“…e foi aí que todo mundo descobriu que ele não tinha sido um menino maluquinho. Tinha sido era um menino feliz.” As últimas linhas de O Menino Maluquinho, clássico infantil de 1980 que vendeu mais de 4 milhões de exemplares, serviria de epitáfio para a vida e a magistral obra do cartunista e escritor Ziraldo. Sem ele, o Brasil teria sido mais infeliz do que é. Pode-se contar a história do país — dos horrores impostos pela ditadura militar durante os anos 1960 e 1970 ao tempo de esperança que brotaria com a democratização — pela pena engraçada e melancólica, em preto e branco ou cores, do artista nascido em Caratinga, cidade de Minas Gerais — ou então tingida de flicts, a cor de 1969 inventada para um livro que ainda hoje emociona pela defesa da diversidade e contra o bullying, em temas que muito depois é que ocupariam a cabeça de quem andava no mundo da lua. Neil Armstrong, aliás, apresentado a Ziraldo e ao livro, emocionou-se com a história e garantiu: “The Moon is flicts”. Flicts, aliás, foi batismo extraído de uma interjeição usada pela Supermãe, a histriônica personagem da revista CLAUDIA, da Editora Abril.
O final dos anos 1960, quando o ser humano pôs o pé naquele terreno lunar com um quê de ferrugem, era também tempo de horror no Brasil — e Ziraldo, sobretudo a partir de 1969, nas páginas de O Pasquim, ao lado de nomes como Millôr Fernandes, Henfil, Jaguar, Ivan Lessa, Sérgio Augusto e cia., botou para quebrar. Em charges e textos, denunciava a censura e a tortura, e ridicularizava a turma de quepe. Seria preso três vezes. “Ter podido atravessar os anos de chumbo fazendo O Pasquim foi uma dádiva”, disse. “Morríamos de medo, mas fazíamos de tudo.” Em 2008, ele e Jaguar, fundadores do tabloide, receberam do governo indenização de 1 milhão de reais cada um. Criticado pelos mais conservadores por aceitar o dinheiro, respondeu na lata, como se levasse uma a de alumínio na cabeça: “Quem contesta o direito à anistia não botou na seringa. Minha aposentadoria é de 1 200 reais. Fiquei emocionadíssimo. O Brasil me deve essa indenização”.

Numa de suas mais conhecidas charges, com a genialidade a serviço da ironia, ele traduziu tudo o que se vivia, nos porões e na superfície, como alerta a quem fingia não saber da existência da autocracia: um personagem, apoiado na extremidade da moldura do desenho, tem uma faca a lhe atravessar as costas até o peito. E diz, como quem grita: “Só dói quando eu rio”. Ziraldo morreu em 6 de abril, aos 91 anos. Em 2018 tinha sofrido um AVC. Deixa um trabalho inigualável, de quem fazia acordar os homens e adormecer as crianças, como na Canção Amiga de Carlos Drummond de Andrade.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888