João Carlos Martins: “A música é a minha vida” 336u2j
O pianista de 84 anos fala da luta contra um câncer no momento em que dá novo o na carreira 731q1m

Fui pego de surpresa quando recebi o diagnóstico de câncer de próstata durante exames de rotina. Era março deste ano, e faltava menos de um mês para o concerto que faria no Carnegie Hall, em Nova York, o último que planejei para me despedir do circuito internacional. Foi devastador. Já ei por 31 cirurgias ao longo da vida. Me habituei a saltar do abismo e sempre segui adiante, me adaptando às circunstâncias. Certa vez, fiz uma exibição ao piano em Berlim com uma apendicite grave. Acabou o show e fui me operar. O pior veio aos 22 anos, quando notei movimentos involuntários repetitivos. O diagnóstico: distonia focal do músico, um problema neurológico semelhante ao Parkinson e sem cura. Para continuar a tocar, recorri a um estimulador cerebral que me ajudou a conter os sintomas — um procedimento complexo. Aprendi a viver, nas últimas seis décadas, com dores e desconfortos. Nesse tempo, precisei interromper duas vezes a carreira e, para tentar driblar o cérebro, ei a usar as mãos em posições diferentes. Vinte anos atrás, virei maestro.
Ao saber do câncer, decidi me submeter imediatamente à cirurgia. Felizmente, correu tudo bem — o tumor estava removido. Mas o pós-operatório foi penoso. E eu precisava ficar bem o quanto antes. Não queria abrir mão daquela última apresentação para a qual estava me preparando havia tempos. Quando a situação parecia resolvida, contraí um vírus que causou uma tosse terrível, dois dias antes do aguardado Carnegie Hall. Mas deu tudo certo. Comecei o concerto regendo uma peça de Bach, que considero fantástica, e engatei com duas obras monumentais de Villa-Lobos. Na segunda etapa, quis mostrar a importância de compositores de formação clássica que migraram para o popular, mas acabaram se tornando clássicos mesmo. Em dado momento, toquei piano com luvas biônicas que facilitam a movimentação dos dedos (na foto) — de Tom Jobim a Piazzolla.
Estou fazendo uma transição em minha carreira, mais uma. Como maestro, estreei aos 63 anos e agora, com 84, me dedico cada vez mais à educação musical. Meu pai era apaixonado por música e sempre teve o sonho de ser pianista profissional, transmitindo o interesse aos filhos. Aos 8 anos, comecei a tocar e, aos 10, já tinha em meu repertório algumas das peças mais importantes de Bach. Foquei toda a minha vida na música e hoje sinto que é preciso ar para a frente o que aprendi. Será mais uma página em minha história, voltada para o legado que pretendo deixar. Nesses anos, desenvolvi uma metodologia que já começou a ser aplicada pontualmente e, em 2026, se estenderá a diversas escolas do Brasil. A ideia é que a música seja apresentada às crianças de forma leve, como uma brincadeira, para que gostem de verdade dela. Não quero que meninos e meninas a vejam como obrigação. Meu objetivo é colocar as canções em outro patamar para essa garotada — o grande sonho de Villa-Lobos. Agora, com saúde, estou pronto.
Em minha despedida internacional, em Nova York, o mais emocionante foi quando as 3 000 pessoas ali presentes me aplaudiram de pé. Isso antes mesmo de eu ter tocado uma única nota. Senti uma tremenda responsabilidade. Tenho uma trajetória de muitas adversidades em relação à minha condição física. Mas aprendi a vê-las como algo superável. Para mim, os problemas para valer são de outra ordem, a das doenças do espírito. E delas estou livre, no que a música tem um papel essencial. Mais do que salvar, ela deixa claro que Deus existe. Meu derradeiro concerto, não por acaso, foi batizado de Music Always Wins, no sentido de reafirmar que a música vence e supera qualquer coisa. Depois dos 80, enfrentar uma anestesia geral em um procedimento tão delicado me trouxe medo, claro. Que bom que ei por essa. O prêmio foi ter realizado o melhor concerto da minha vida.
João Carlos Martins em depoimento a Valentina Rocha
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2025, edição nº 2948