Guel Arraes: um ex-diretor da Globo no fogo cruzado da polarização 4z5i1h
Ele se prepara para lançar um 'Grande Sertão: Veredas' ambientado numa favela 445137

Entre as memórias que preserva do pai, o cineasta Guel Arraes ressalta uma apoteótica: “Lembro de olhar pela janela de casa, quando ele virou governador de Pernambuco, e ver milhares de trabalhadores gritando o nome dele. Imagina isso na cabeça de um menino de 10 anos">em entrevista a VEJA.
Hoje aos 68 anos, Guel é peça incontornável da história da TV e do cinema nacionais — posição atingida graças ao domínio de uma técnica engenhosa: da sátira ao drama, ele retrata com primor as delícias e as agruras de ser um brasileiro. Mais notável é o modo como faz isso sem cair nas armadilhas da polarização — nem pender para a nebulosa área dos isentões. Em breve, essa habilidade ará por um teste de fogo: ao lado de seu parceiro criativo, o roteirista Jorge Furtado, Guel vai lançar uma adaptação atual, e com alto teor de crítica social, de Grande Sertão: Veredas. A obra de Guimarães Rosa vai se ar numa favela carioca em guerra com a polícia. E o memorável Diadorim será não binário, como o próprio livro sugeria antes de o termo existir.

O filme, que posteriormente será uma minissérie na Globo (ambos sem data de estreia), atesta a resiliência do livro de 1956 ao tempo e a profundidade dos problemas enraizados no Brasil. Para o cineasta, a obra de Guimarães já continha a tríade que originou o gênero nacional conhecido como favela movie: violência urbana, corrupção e influência religiosa. “O problema sociopolítico virou uma questão artística. Mas se nem a direita nem a esquerda sabem o que fazer com a violência brasileira, querem que a gente resolva?”, pondera.
O diretor, contudo, não se resigna ao papel de mero observador. Para ele, a análise ética do problema vem acompanhada de empatia. O melhor exemplo é a popular adaptação de O Auto da Compadecida, de 2000. Na trama de Ariano Suassuna, a comédia é o recurso que cria o laço do público com as malandragens de dois nordestinos pobres. Em paralelo, a hipocrisia de membros da Igreja e da dita família tradicional corre solta. Por fim, Fernanda Montenegro no figurino de Nossa Senhora apazigua os ânimos no Além narrando a nada fácil vida dos pecadores da cidade.

A abordagem se repete em Vai Dar Nada, o primeiro filme da dupla Guel e Furtado para o streaming, lançado em maio pela Paramount+. A trama cômica se a em um desmanche no Rio, epicentro de uma treta entre traficantes e policiais causada por um jovem malandro que só queria uma boa moto para conquistar uma garota.
A estreia do pernambucano no streaming reflete as mudanças recentes no audiovisual. Guel foi um dos criadores do humorístico TV Pirata, nos anos 1980 pós-ditadura. Na Globo, estabeleceu o padrão das séries — de A Grande Família a O Bem Amado —, adicionando novo tempero à rotina noveleira do país. Em 2018, deixou o comando das séries da Globo para atuar de forma independente. Sua renovação agora é aprofundada pelas plataformas, que impulsionaram as produções nacionais com investimento estrangeiro no momento em que a “guerra cultural” bolsonarista minou os incentivos públicos. “O cinema brasileiro é lindo e a TV é forte, só nosso governo não vê”, critica ele. Eis um diretor sem medo do fogo cruzado.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795
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