Como o protagonismo de Janja cria problemas dentro e fora do governo Lula 22104b
Comportamento da primeira-dama Rosângela da Silva ajuda a desgastar a imagem do presidente 6v1p4m

O papel de primeira-dama já foi desempenhado de diferentes maneiras. Anita Peçanha — mulher de Nilo Peçanha, o único presidente negro da história do Brasil — brigou com a família para se casar, manifestava suas opiniões e gostava de debater com aliados e adversários. Já Sarah Kubitschek, esposa de Juscelino Kubitschek, tinha pouco apreço pela política e se dedicou a assuntos relacionados à saúde da mulher e ao combate ao câncer ginecológico. Após a redemocratização, Rosane Collor, seguindo a cartilha mais tradicional para a função, foi designada para cuidar de uma ação social, mas acabou demitida pelo marido, Fernando Collor de Mello, depois de a imprensa revelar que recursos públicos estavam sendo desviados para a própria família dela. Marcela Temer priorizou a vida familiar e a educação do filho com Michel Temer. A batuta agora está com Rosângela da Silva, a atual esposa de Lula, que sempre deixou claro que gostaria de “ressignificar” a atuação da primeira-dama, tirando-a da condição de coadjuvante.
Até agora, Janja atingiu um inegável protagonismo, mas também se tornou motivo de desgaste para o presidente e de cizânia entre integrantes do governo. Seu prestígio incomoda, o que ficou patente no polêmico episódio ocorrido na viagem oficial de Lula à China. Durante um jantar oferecido pelo presidente chinês, Xi Jinping, a primeira-dama brasileira pegou de surpresa o anfitrião e os demais convivas, sujeitos a rigoroso protocolo, e ou a fazer considerações sobre os efeitos nocivos do TikTok, plataforma digital pertencente a uma empresa do gigante asiático. Ela declarou que o TikTok está a serviço da extrema direita e também serve de veículo para a disseminação de conteúdos que incentivam a violência contra mulheres e crianças. Conforme noticiado, Xi Jinping respondeu lembrando que o Brasil tem autonomia para regulamentar as redes sociais em seu território e que o problema, portanto, não lhe dizia respeito. Num sinal do clima de animosidade reinante no entorno presidencial e da insatisfação com a primeira-dama, o diálogo logo foi vazado, acompanhado da versão de que ministros ficaram constrangidos com a iniciativa de Janja.

O caso logo virou munição no embate político, sendo usado pela oposição para fustigar o governo. Segundo pesquisa do Ipespe divulgada na quarta 21, a intervenção de Janja no jantar com a delegação chinesa foi a terceira notícia mais citada por 2 500 entrevistados, ficando atrás do escândalo do INSS e da própria viagem oficial de Lula ao país asiático. Nas redes sociais, bolsonaristas voltaram a chamar a primeira-dama de deslumbrada, algo que fazem há bastante tempo, aproveitando-se, por exemplo, de sua movimentada agenda de viagens internacionais. “O fato de ela ser primeira-dama não a credencia a inquirir, em meio a uma viagem diplomática, um dos homens mais importantes do mundo sobre questões alheias ao encontro. Janja é primeira-dama, e não uma rainha do mundo antigo”, diz o cientista político Renato Dorgan Filho, CEO do Instituto Travessia, que detectou em pesquisas qualitativas uma alta na rejeição à mulher do presidente.
Marido devotado, Lula, é claro, pensa diferente. Ainda durante a viagem, o presidente foi perguntado sobre o caso. Visivelmente irritado, criticou o vazamento da conversa, afirmou que ele puxou o assunto TikTok e chancelou a iniciativa de Janja, como tem feito desde sempre. Se a primeira-dama age com desenvoltura e sem amarras, como se tivesse cargo e procuração oficiais, portanto, é porque recebe do mandatário carta branca para isso. “O fato de a minha mulher pedir a palavra é porque minha mulher não é cidadã de segunda classe. Ela entende mais de rede digital do que eu e ela resolveu falar”, declarou o petista. Já os áulicos preferiram tirar da manga a velha e surrada carta da misoginia, alegando que Janja só foi atacada por ser mulher. Na verdade, as críticas são pertinentes e não têm nada a ver com machismo.

O fato é que o presidente não gostou de ver a primeira-dama sendo fustigada. Na viagem de retorno ao Brasil, Lula reclamou de deslealdade e disse que o vazamento da intervenção de Janja era inissível. Alguns auxiliares a bordo do avião presidencial franquearam seus celulares para que fossem checados pelo chefe, como forma de provar que não tinham sido a fonte da divulgação. Dos onze ministros que o presidente levou à China, cinco participaram do jantar oferecido por Xi Jinping: Alexandre Padilha (Saúde), Mauro Vieira (Relações Exteriores), Simone Tebet (Planejamento), Rui Costa (Casa Civil) e Carlos Fávaro (Agricultura). O presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), e o deputado Elmar Nascimento (União Brasil-BA), vice-presidente da Câmara, também estavam no convescote. “Escutei uma fala da primeira-dama absolutamente dentro da normalidade, a pedido do presidente, em que fez considerações a respeito do uso das redes sociais para práticas de pedofilia e estímulos a automutilação e ao suicídio, sobretudo direcionado a crianças. Diferentemente do que foi divulgado, os chineses concordaram”, relatou a VEJA Elmar Nascimento.
O caso teve desdobramentos internos. Como Janja tem prestígio de sobra com Lula, houve uma caça às bruxas para tentar descobrir quem vazou a história. No serpentário palaciano, a suspeita inicial recaiu sobre Rui Costa, que acumula atritos com a primeira-dama desde o início do mandato. Foi dele a orientação para que ela não recebesse um cargo público. Janja, por sua vez, debita na conta do chefe da Casa Civil a divulgação da versão de que ela queria trocar o mobiliário do Palácio da Alvorada a um custo milionário. O autor do vazamento na China não foi encontrado, e a procura por ele, encerrada. Diante da pauta negativa, o ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Sidônio Palmeira, orientou o governo a virar a página e deixar a questão do TikTok para trás. Não deu certo. Sem combinar com o marqueteiro, Janja usou um evento organizado pelo Ministério dos Direitos Humanos, uma de suas áreas de influência no governo, para deixar claro que não recuaria nem faria mea-culpa.
Durante a abertura da Semana Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, ocorrida na segunda-feira ada, ela afirmou: “Não há protocolo que me faça calar se eu tiver uma oportunidade de falar sobre isso com qualquer pessoa que seja, do maior grau ao menor grau, do mais alto nível a qualquer cidadão comum”. Em seguida, disse que, “como mulher”, não ite que ninguém a mande ficar calada. Sidônio, cuja missão é unificar a comunicação do governo, foi pego de surpresa. Ao assumir a função, ele teve o aval de Lula para demitir uma apadrinhada de Janja, mas desta vez não pôde deter a primeira-dama.

A força dela no governo é enorme e foi semeada há muito tempo. Na disputa presidencial, Janja ajudou a definir estratégias de campanha, aproximando Lula de pautas progressistas. Na ressacada da invasão e depredação das sedes dos três poderes, em 8 de janeiro de 2023, ela levantou a voz contra a proposta apresentada a Lula pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, de decretar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Segundo Janja, isso serviria aos intentos de Jair Bolsonaro, por colocar o Exército nas ruas. Na ocasião, a primeira-dama foi muito elogiada pela ponderação.
Na formação do governo, Janja também ajudou a escalar ministros, como a titular da Cultura, Margareth Menezes. Seus pupilos na Esplanada, assim como o presidente, fazem questão de render homenagens a ela sempre que podem. Na terça-feira 20, Janja foi condecorada por Lula e Margareth Menezes com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito, a maior honraria concedida pelo governo a nomes que contribuíram para a cultura brasileira. A comenda também foi concedida, entre outros, à atriz Fernanda Torres e ao cineasta Walter Salles, que conquistaram o Oscar de melhor filme internacional com Ainda Estou Aqui. Procurado, o Ministério da Cultura informou que a primeira-dama foi homenageada porque fez contribuições relevantes à cultura, teve seu nome indicado pela ministra e chancelado pelo presidente da República, que dá a palavra final.
Aguerrida e voluntariosa, Janja tem o privilegiado ao presidente, influencia em políticas públicas e, por vezes, seleciona quem e quando uma pessoa pode falar com o marido. Poucos no Palácio do Planalto e na Esplanada têm coragem para contestá-la, já que o próprio Lula quase nunca faz isso, mesmo quando o constrangimento é evidente. Foi o que ocorreu na reunião do G20, em novembro do ano ado. Na ocasião, durante uma palestra sobre o combate à desinformação, Janja xingou o empresário Elon Musk, dono da rede social X e um dos mais poderosos colaboradores do presidente americano, Donald Trump. O problema, como de costume, é que tamanha visibilidade vem acompanhada de cobrança à altura. Parlamentares bolsonaristas pediram ao Tribunal de Contas da União (TCU) que investigue os gastos de Janja em viagens internacionais e as despesas públicas empregadas em eventos organizados por ela, como o “Janjapalooza”, como foi apelidado o festival de música organizado por ela realizado em paralelo à reunião do G20 no Brasil. A oposição também quer saber detalhes da relação da primeira-dama com a Organização de Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) e se ela ajudou a intermediar a contratação da entidade, por 478 milhões de reais, para participar da organização da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada em Belém. Conforme revelado por VEJA, Janja figura como uma das coordenadoras da OEI.

No início do terceiro mandato de Lula, o protagonismo da primeira-dama estimulou o boato de que ela poderia ser candidata à Presidência. Hoje, o quadro não é nada animador para ela. Pesquisa divulgada em abril pela AtlasIntel em parceria com a Bloomberg mostrou que 52% dos brasileiros tinham uma imagem negativa de Janja e 34%, positiva, o que dá um saldo negativo de 18 pontos percentuais, pior do que o registrado por Jair (-11) e Michelle Bolsonaro (-9). Coautora dos livros Todas as Mulheres dos Presidentes e Janja: a Militante que se Tornou Primeira-dama, a jornalista Ciça Guedes diz que a mulher de Lula tem influência no governo devido a sua relação histórica com o PT. Ela está no partido desde a adolescência, mas nunca ocupou cargos de direção nacional nem foi considerada um quadro de ponta da sigla até a sua união com o mandatário. “Em tempos de polarização como os de hoje, a atuação de uma mulher como a Janja será alvo de críticas ainda mais contundentes”, afirma a autora, que assina as obras com Murilo Fiuza de Melo.
No cômputo geral sobre o papel exercido pelas primeiras-damas no país, é quase unânime a opinião de que a antropóloga Ruth Cardoso desponta como referência. Ela era respeitada no mundo acadêmico, deixou um legado respeitável na área de assistência social e adotou uma postura política de independência, chegando a criticar alianças firmadas pelo marido, o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Dona Ruth, como era conhecida, também teve protagonismo, mas de uma forma bem diferente do estilo de Janja. O exemplo mostra que há formas e formas de ressignificar o papel de primeira-dama.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945